Notas Poéticas
Ao ouvir Golfinho Gaivota, eu fiquei curioso para entender melhor a idéia da compositora sobre cada música. Então eu pedi a Lourdes Ábido para falar sobre as harmonias, melodias, letras e canções no álbum. Aqui está o que ela escreveu.
A ERA DO VAZIO – Fiz essa música no violão e como não me preocupei com a letra, experienciei uma liberdade maior que me conduziu à esses caminhos melódicos e harmônicos. Expressam como eu sinto o mundo em que vivemos. Os conceitos de “banalidade do mal” e de “vazio de pensamento” fundados na reflexão filosófica de Hannah Arendt na década de quarenta, ainda tão atuais hoje. Ao ser convidada por Bianca pra assistir o primeiro show do Trio Arcano (Victor Somma arranjo e flauta, Bianca Gismonti piano e José Izquierdo percussão), no final do show eu pensei: encontrei a sonoridade que eu buscava pra “A Era do Vazio”.
PRINCÍPIO DA INCERTEZA – Numa viagem de Brasília ao Rio, Reynaldo Jardim escreveu essa letra e me telefonou dizendo: escrevi uma letra pra você fazer a música e fala de uma relação amorosa e os princípios da física quântica. Quando li, me emocionei muito: “Quem fecha os olhos não olha / Olha pra dentro da vida / Mergulhou na Mata Atlântica / Tanto amou que feneceu”. Peguei o violão e fiquei a noite toda fazendo a música. Já eram 4 hs da manhã quando gravei voz e violão num gravadorzinho (como sempre faço quando componho), e escrevi a harmonia pra não esquecer. Depois liguei o gravador pra ouvir a música e comecei a chorar… ouvia e chorava… ouvia e chorava até o amanhecer. Um dos versos que mais gosto “Sax tenor da saudade” foi o fio condutor que me levou à concepção desse arranjo minimalista e à essa formação dos músicos: violão, sax, percussão e voz. Primeiro gravamos o violão (Willians Pereira) e voz (Lourdes). Aí enviei essa gravação pra Jorge Continentino, um músico brasileiro de uma sensibilidade e musicalidade incríveis (que mora em New York) gravar o saxofone. No final das gravações, convidei Ramiro Musotto pra gravar a percussão.
GAIVOTA – Em 2004 ganhei de presente um livro do meu amigo, poeta e parceiro musical Reynaldo Jardim, que se chama “Maria Bethânia Guerreira Guerrilha”. O livro todo é um belíssimo poema que o Reynaldo escreveu em homenagem à Maria Bethânia no ano de 1968, época que o Brasil estava sob o regime da ditadura militar. Com a autorização do autor, escolhi um pequeno trecho do poema, musiquei e dei o nome de “Gaivota”. Os dois últimos versos são: “É gaivota baixando e tornando a voar / É Bethânia cantando na beira do mar”. O belíssimo arranjo pra violão e gaita é do grande violonista Marco Pereira. Violão Marco Pereira, contrabaixo acústico Zeca Assumpção, gaita Gabriel Grossi e percussão Ramiro Musotto, voz Lourdes Ábido.
RECOMPONDO O SONHO – É uma celebração à vida contida nas pequenas grandes coisas. Foi uma das primeiras músicas que fiz quando recomecei a compor. Que me perdoem pela minha ousadia os grandes sambistas: Noel Rosa, Geraldo Pereira, Cartola, Nelson Cavaquinho, Paulinho da Viola, Baden Powell e tantos outros… O arranjo para o violão é do Lula Galvão e gravamos primeiramente os violões do Lula, tremendo violonista e super criativo no improviso. Algumas semanas depois, o grande Ramiro gravou a percussão e Nicolas Krassik, com toda a sua criatividade de improvisação gravou o violino. Voz Lourdes Ábido.
L’AMOUR POUR UN MONDE PLUS HUMAIN – Estudei piano clássico dos 10 aos 15 anos. Dos 15 aos 18 anos estudei violão com Egberto Gismonti em Nova Friburgo, onde participei do show “Metrônomo 1”, sob a direção musical e arranjos do Egberto. Quando entrei para o curso de Letras (Português / Francês e Literatura) participava sempre dos shows de música e poesia na universidade. Depois, com Licenciatura em Letras, viajei para Paris onde residi por um período de 12 meses e fiz um curso de Fonética na Sorbonne. Só retornei à música 20 anos depois, já morando no Rio, mas sem nenhuma pretensão profissional. Foi quando nas aulas de harmonia com a Celinha Vaz, em 1996, recomecei a compor e me reencontrei. A Celinha, no seu home studio fez um arranjo e gravou um samba meu que ganhei de presente de aniversário num cd demo. Fiquei muito emocionada porque nunca tinha ouvido uma música minha gravada com arranjo e tal… Aí gravei um cd demo em 2000 e enviei pra algumas cantoras na tentativa de alguém se interessar e quem sabe gravar alguma música minha. Foi quando Simone Guimarães me telefonou dizendo que tinha gostado muito das minhas músicas e me perguntou se eu poderia fazer uma letra em inglês pra uma música de sua autoria. Eu disse que teria a maior satisfação em fazer uma letra em francês e ela topou. E foi a nossa primeira parceria que dei o nome de “L’Amour pour un monde plus humain” e que eu canto no meu disco com a especialíssima Miúcha. Arranjo do Lula Galvão com minha participação, violões do Lula Galvão, trompete em surdina harm Jessé Sadoc e baixo acústico Zeca Assumpção.
GOTAS DE POESIA – Eu havia feito um estudo com a maestrina, compositora e cantora Célia Vaz das harmonias de alguns clássicos do jazz, comparando com as harmonias da bossa-nova. Inconscientemente levei essas referências harmônicas da bossa-nova quando fiz a música “Gotas de Poesia”. Escrevi essa letra em 31/12/2000 e a música veio chegando devagar. Virei a noite compondo, semi-deitada no sofá da sala, a mão esquerda posicionada de forma inadequada devido à minha posição, buscando os acordes. Me esqueci de mim durante 10 horas e às 6hs da manhã a música estava pronta e o meu polegar esquerdo com uma tenoscinovite. Arranjo e piano do maestro Leandro Braga que dialoga sutilmente com o violão do Lula Galvão, o contrabaixo acústico do Zeca Assumpção e a bateria do Erivelton Silva. Voz da Miúcha. “Redesenhar a esperança no meu coração tropical / Fotografei a lembrança que sobrevoa no tempo / Sentimento bonito demais / É transformar a tristeza em alegrias musicais”…
CALENDÁRIO – Recebi essa letra via e-mail do meu amigo e poeta Reynaldo Jardim. Fala de forma original e poética dos diferentes momentos de uma relação amorosa no decorrer dos meses do ano: “Te consumi e era julho / Fiz de você papel de embrulho / E me embrulhei pra presente / Inconsequente eu te embalava / Era a mim mesma que eu amava”… Quando terminei de compor a música percebi que tinha feito uma mistura de diversos estilos de harmonia: tango, samba, bossa-nova, jazz e chorinho, tem de tudo. Arranjo e violão de Alexandre Gismonti e voz de Jane Duboc.
VENTO DE AGOSTO –Música de minha autoria e letra do Reynaldo Jardim: “Atento o tempo / O tempo tenso /Já não suporta / O próprio invento / Que leve o vento / O desalento / E estanque o tempo / Seu movimento/ Sopre de novo / Vento luzente /Torne o amor / Incandescente”. Belíssimo arranjo pra violão e flauta do Alexandre Gismonti, violão Alexandre Gismonti, flauta do Victor Somma, contrabaixo acústico que é a mais pura criatividade do Zeca Assumpção e voz da Jane Duboc.
GOLFINHOS – Os estudos de harmonia nas aulas com a maestrina Célia Vaz como empréstimo modal, o sub V, escalas dos acordes, relação melodia/harmonia, modulação, foram a base de todas as minhas músicas à partir de 1997. Comecei a fazer essa música que revela ricas referências da bossa nova nos primeiros 20 compassos. Achei o tema interessante, com um tremendo suingue e resolvi repetir o tema, a mesma melodia e harmonia totalizando 40 compassos. Gravei numa fita cassete e aguardei o momento pra continuar e fazer a segunda parte. Simone Guimarães veio à minha casa trazer a fita com a música gravada, de sua autoria, pra que eu escrevesse a letra em francês que seria a nossa primeira parceria e aí mostrei a primeira parte de “Golfinhos” (que ainda não tinha esse nome) pra ela, que na empolgação me pediu pra fazer a segunda parte. Aceitei com a maior satisfação mas pedi que ela fizesse uma melodia lírica, lenta, porque a primeira parte já era toda suingada. O que ela fez lindamente os 16 compassos que correspondem aos seguintes versos: “Viajar, ir pra longe / Lá onde podem se amar, dançar, brincar”. Eu dei continuidade e fiz a terceira parte que é um baião, para homenagear a música nordestina e pra dar o sabor das raízes brasileiras. E a quarta parte da música é a repetição melódica e harmônica da primeira parte. Essa música ficou à espera de uma letra quase 1 ano. Ao retornar de uma viagem à Fernando de Noronha, onde eu filmei todas as praias, aquela natureza exótica e exuberante, os passeios de barco com os golfinhos nos acompanhando, eu frequentemente via esse filme até que um dia… Telefonei pra Simone e disse: quero fazer a letra daquela música que está pronta. Estou imaginando uma letra com mar, céu azul, sol, golfinhos e Noronha, vamos escrever essa letra? Ela veio pra minha casa, fizemos pesquisa num livro que comprei e tinha tudo sobre a ilha: nomes dos pássaros,das praias e Simone começou a letra: “É de parar e olhar pra trás / ver os golfinhos por aí / É lindo, é sensual demais / Nossos golfinhos vem aí”. A maior parte da letra é da autoria de Simone. Eu escrevi a última estrofe: “Nuvens, cenários de cristais / Vôos rasantes pelo ar / São multicores de corais / Um arrasante show no mar / Boldró, Cacimba, Sancho, Atalaia e Conceição / Vento esculpindo pedra nessa solidão” e escrevi alguns versos avulsos: “Mar de Noronha, sonha / São acrobatas desse mar”. E Simone finalizou com o verso: “Milhares de golfinhos no meu coração”. Puxa…música pronta numa parceria feliz. Simone ficou com a autoria da letra e eu fiquei com a autoria da música. Foi gravada para o meu disco que se chama Golfinho/Gaivota pelo grupo vocal Nós Quatro cujos integrantes são: Célia Vaz, Fabíola Sendin, Márcio Lott e Clarisse Grova, com belíssimo arranjo vocal e direção musical da maestrina Célia Vaz.
DA ARTE DE NÃO ESPERAR – Eu estava lendo o jornal “O Pasquim”, quando dei de cara com esse poema que me sensibilizou muito, além de ficar feliz ao ler o nome do autor: Reynaldo Jardim. Não via o Reynaldo há quase 20 anos. Peguei o violão e brincando com os acordes comecei a fazer a música em forma de samba que teve também a participação autoral de Simone Guimarães. Ao finalizar a música, vi o e-mail do Reynaldo no jornal e escrevi pra ele me identificando, contei à ele sobre a música solicitando sua autorização. Assim aconteceu a minha primeira parceria com Reynaldo e depois vieram outras, algumas já comentadas aqui. Tárik de Souza escreveu: “Da Arte de Não Esperar” é um inventário político-musical do país”. “Não fique à toa na vida / Vendo essa banda passar / A banda passou e o Chico / Foi para a rua lutar./…esperar não é saber / Vandré poeta da hora / Pagou caro para ver” rebobina a letra. Arranjo para violões Lula Galvão, percussão Ramiro Musotto, violino Nicolas Krassik e voz Lourdes Ábido.
SAMBA MARCHA – Simone Guimarães me mostrou a primeira parte dessa música que ela compôs e me perguntou se eu faria a segunda parte o que aceitei logo e assim o fiz porque gostei muito do que eu tinha ouvido. Como já disse, quando não tem uma letra, eu experiencio uma liberdade maior e busco caminhos novos. Sou grata à Simone pela oportunidade que me foi oferecida pra compor a segunda parte de “Samba Marcha”, que gosto muito. Arranjo e flauta do Victor Somma, piano Bianca Gismonti e percussão José Izquierdo que formam o Trio Arcano, cuja interpretação e arranjo transcenderam as minhas expectativas. Adorei!
FANTASIA – Música e letra de minha autoria (1997) com um belíssimo arranjo e piano de Egberto Gismonti na interpretação da linda voz da Leila Pinheiro. Essa música foi uma das classificadas para concorrer ao Prêmio Visa em São Paulo, em 2003, edição compositores, e defendida no festival por Leila Pinheiro.
Agradeço aos músicos e intérpretes que contribuíram pra realização desse disco, compartilhando comigo suas grandezas humanas e artísticas.
[A resenha do CD em inglês está aqui.]
FICHA TÉCNICA
Lourdes Ábido
Golfinho/Gaivota
Independent LA-0001 (2007)
Tempo: 50’28”
Tracks:
Todas as faixas de Lourdes Ábido, exceto onde indicado.
- A Era do Vazio
- Princípio da Incerteza (Lourdes Ábido – Reynaldo Jardim)
- Gaivota (Lourdes Ábido – Reynaldo Jardim)
- Recompondo o Sonho
- L’Amour pour un Monde plus Humain (Simone Guimarães – Lourdes Ábido) c/ Miúcha
- Gotas de Poesia – c/ Miúcha
- Calendário (Lourdes Ábido – Reynaldo Jardim) – c/ Jane Duboc
- Vento de Agosto (Lourdes Ábido – Reynaldo Jardim) – c/ Jane Duboc
- Golfinhos (Lourdes Ábido – Simone Guimarães) – c/ Nós Quatro
- Da Arte de Não Esperar (Lourdes Ábido – Simone Guimarães – Reynaldo Jardim)
- Samba Marcha (Simone Guimarães – Lourdes Ábido) – c/ Trio Arcano
- Fantasia – w/ Leila Pinheiro & Egberto Gismonti
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