Um Chorão na Terra do Tio Sam
A dedicação de Cliff Korman para a música brasileira continua com firmeza incansável. No ano 2000, ele foi destaque em um projeto com Andreas Vollenweider no dueto com Wagner Tiso e acompanhando Mílton Nascimento com um quinteto de cordas e percussão. Ainda no mesmo ano, a sua participação com Carlos Malta em Pimenta foi marcante. Encerrando aquele ano, Cliff apresentou uma palestra com o título “Jazz & Brazilian Instrumental Music: Common Roots, Divergent Paths” (Jazz e Música Instrumental Brasileira: Raízes Comuns, Caminhos Divergentes) na Universidade de Rutgers.
No princípio de 2001, ele arranjou, produziu e tocou piano em Blue Bossa da cantora brasileira Ana Caram, além de produzir o retorno de Chuck Mangione. Também excursionou em Portugal e Itália com o projeto Gafieira Dance Brasil (veja resenha do CD abaixo). O seu lançamento Bossa Jazz: The Cliff Korman Quartet Plays the Music of Pacífico Mascarenhas recebeu grandes elogios da imprensa brasileira. Dentre estes, José Domingos Raffaelli escreveu em O Globo que Cliff absorveu os segredos da MPB e afirmou mais uma vez ter o dom da linguagem brasileira e abilidade improvisional. José Domingos classificou Bossa Jazz como um dos melhores CDs daquele ano.
No presente, Cliff leciona o grupo de jazz brasileiro na New School em Nova Iorque. Para Janeiro de 2003, Cliff vai apresentar em Toronto, Canadá, durante o encontro anual da Associação Internacional de Educadores de Jazz (International Association of Jazz Educators, IAJE) uma palestra sobre o aspecto da improvisação no choro.
Um pouco antes disso tudo, Cliff Korman conversou comigo sobre seu projeto Mood Ingênuo e sua relação com o choro e a música brasileira.
Do mesmo modo que os nomes de João Gilberto e Tom Jobim deixaram suas marcas permanentes na bossa nova ou Caetano Veloso e Gilberto Gil foram duas das forças do movimento tropicalista, antes deles, Alfredo da Rocha Viana Jr. (mais conhecido como Pixinguinha) fez-se presente na música brasileira como o mestre do choro. O jornalista e musicólogo Ary Vasconcelos certa vez foi abordado sobre a vastidão da música brasileira. Ele disse que 15 volumes não dariam para cobrir todo o assunto. Entretanto, se ele tivesse que usar apenas uma palavra para definir a música brasileira, esta palavra seria Pixinguinha.
Embora Pixinguinha mesmo tenha dito no seu depoimento ao Museu da Imagem e do Som que ele havia nascido no Rio de Janeiro a 23 de abril de 1898, o ano correto é de fato 1897. Esta descoberta foi o resultado da pesquisa feita por Jacob do Bandolim. Ele descobriu a certidão de nascimento de Pixinguinha na Igreja de Santana, onde Pixinguinha havia sido batisado. Quanto à origem do nome Pixinguinha, existem duas versões. Uma das avós de Pixinguinha era africana e o chamava de Pizinguim, que no seu dialeto africano significava “criança boa”. Pixinguinha também disse que quando criança ele teve varíola (também chamada de bexiga). Ele era então chamado de bexiguinha e, eventualmente, tornou-se Pexinguinha e Pixinguinha.
No outro hemisfério e dois anos mais tarde, em abril de 1899, outro grande músico havia nascido. Também com descendência africana Edward Kennedy Ellington, mais conhecido como Duke Ellington, ajudou na formação musical de outra nação. Duke Ellington e Pixinguinha nunca se encontraram na vida real. Entretanto, os seus legados musicais passaram pelo teste do tempo e através das idéias de dois artistas renomados, Pixinguinha e Duke Ellington finalmente se encontram.
Se eles pudessem ter composto música juntos, o provável resultado de tal encontro teria sido Mood Ingênuo: Pixinguinha Meets Duke Ellington, uma coleção ímpar da música destes dois compositores apresentadas por dois dos mais notáveis artistas de jazz do Brasil e dos Estados Unidos: Paulo Moura (saxofone/clarinete) e Cliff Korman (piano). Paulo Moura é uma figura legendária no cenário musical brasileiro. Arranjador, compositor e instrumentalista, ele tocou com Ary Barroso, Sérgio Mendes, Raphael Rabello e muitos outros. Em grande parte ele é responsável pelo renascimento do choro no Brasil. Paulo recebeu o prêmio Sharp de melhor instrumentalista em 1992. Em 1997 o seu lançamento Pixinguinha (lançado no Brasil pela Velas e no resto do mundo pela Blue Jackel) venceu outro prêmio Sharp, desta vez como o melhor CD instrumental e o melhor grupo instrumental (o álbum foi gravado com o grupo Os Batutas, uma versão contemporânea do grupo original de Pixinguinha). O pianista Cliff Korman, que estudou com Roland Hanna e Kenny Barron, não é novato na música brasileira. Dentre os vários artistas com quem trabalhou no mundo inteiro, ele inclui os nomes de Toninho Horta e Leny Andrade. Ele também já deu várias oficinas sobre jazz e música brasileira na Universidade Federal de Minas Gerais, Escola de Música de Brasília e também o City College of New York e Drummers Collective in New York City. Talvez a melhor introdução para Cliff Korman seja mesmo nas próprias palavras de Paulo Moura. Paulo disse:
…Como todo brasileiro sempre escreve um choro, Cliff Korman já se tornou um músico brasileiro. Ele já tem o seu próprio choro intitulado “Saudade do Paulo”.
Conversando com Cliff Korman, ele me falou sobre Mood Ingênuo e a música brasileira.
EL: Como surgiu a idéia de Mood Ingênuo?
CK: Nosso projeto começou quando o Paulo me convidou para passar uns dias em Paraty, um desses convites do tipo trabalho e férias. Havia um pequeno teatro e nós íamos nos apresentar lá. Claro que eu estava feliz de poder ter a oportunidade de ver outra parte muito bonita do Brasil e também de ter a chance de tocarmos juntos finalmente. Começamos a juntar o material pro show e o projeto começou a tomar forma e rapidamente progrediu de idéias indviduais e possibilidades através de ensaios até a realização do que podíamos fazer juntos. Paulo mencionou seu sonho do encontro de Pixinguinha com Duke, de quem eu tinha muito material comigo. Como o som do Paulo se enquadra muito bem com este repertório, eu já tinha uma certa intuição de que a gente ía trabalhar com este material. Modelamos a idéia e acrescentamos outras músicas também. Quanto ao nome do disco, este veio do artista comix Art Spiegelman, que desenhou a capa. Ele ficou pasmo com a mistura dos sons. Eu acredito que ele refletiu maravilhosamente o conceito musical na sua forma visual.
EL: E sobre a logística do encontro propriamente dito e o lançamento do álbum? Foi difícil escolher um lugar?
CK: A logística de manter o projeto vivo foi complicada já que vivemos em dois continentes. Comunicávamos por fax e telefone. Às vezes eu mandava uma partitura com uma nota do tipo “pensei em você com esta melodia… O que você acha?” Quando tínhamos uma apresentação juntos, sempre chegávamos com dois ou três dias de antecedência a fim de trabalharmos um pouco e ver como nossas experiências haviam mudado as coisas. Sempre descobriamos novos detalhes e procurávamos incorporá-los nas nossas apresentações. O festival de Cantar da Costa teve a idéia de gravar o show para a rádio italiana. Quando ouvimos a fita, tivemos a idéia de fazer o álbum e procurar uma gravadora para lançá-lo.
EL: Como foram criados os arranjos? Você mencionou antes que às vezes mandava apenas uns esboços. Houve muita improvisação?
CK: Os arranjos foram criados assim. Ou o Paulo ou eu trazíamos quase um produto terminado ou então a gente trabalhava junto. Sempre havia margem para improvisação. Eu acho isto uma consequência natural dos nossos estilos e forma de tocar e também de como combinamos os nossos sons juntos.
EL: Quem você diria foram suas influências na música brasileira? Refiro-me aos artitas brasileiros que de certa forma marcaram ou influenciaram a sua formação na nossa música.
CK: Influências? No princípio foram Tom [Jobim] e João [Gilberto]. Então depois veio (por intermédio de Native Dancer, do Wayne Shorter) o Milton [Nascimento], Toninho Horta e os outros mineiros; teve também Luis Eça, João Donato, Cesar Camargo Mariano, Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti. Mais recentemente tive a oportunidade de ver o trabalho de Ernesto Nazareth. Por meio do Paulo, descobri, entre vários outros, K-Ximbinho e Radamés Gnattali e nesta viagem, graças a muitos músicos que estou conhecendo, pude ouvir muitas gravações destes compositores. O problema com estas respostas é que a gente acaba deixando alguém de fora.
EL: É verdade. Entretanto, isso nos dá uma certa compreensão da sua formação em música brasileira. E sobre essa bolsa da Fulbright no Rio? Parece ser uma bolsa caída do céu.
CK: A bolsa da Fulbright (pesquisa e lecionamento) é o ápice de muitos anos seguindo esta trilha pessoal e profissional. É um destes caminhos que na verdade escolhem você. Meu envolvimento com a música brasileira vem dos meados dos anos 80. Estudei e viajei muito no Brasil para assimilar o jeito e entender o método dos compositores e instrumentalistas brasileiros e também toquei profissionalmente. Ao mesmo tempo eu mantive meu interesse na prática de jazz: sua tradição, linguagem e oportunidade de expressão individual. Recebi meu mestrado do City College of New York, um curso que combina muitos elementos de teoria, análise e pesquisa com ênfase em apresentação. O treinamento recebido foi de muito valor. A bolsa tem dois ângulos: ensino jazz no piano, improvisação e trabalho com pequenos grupos na Escola de Música de Brasília e Universidade do Rio de Janeiro e também estudo as semelhanças e diferenças no desenvolvimento do choro e do jazz. É o momento certo para estudar o choro. Há novos chorões que tem muito respeito pela tradição, tem trabalhado duro para assimilá-lo e buscam novos pontos de vista nos seus trabalhos. É muito legal para mim. Tenho visto no Rio o que encontrei em Nova Iorque: uma geração de novos músicos que são um prazer de se ouvir e também tocar com eles.
EL: Realmente é uma oportunidade fascinante. E sobre os seus projetos no futuro? Depois deste festival em Cantar da Costa, Mood Ingênuo e o Rio, o que está despontando no seu horizonte?
CK: O Paulo e eu estivemos em Cantar da Costa e também no Lincoln Center numa formação de quinteto apresentando um projeto de jazz e gafieira. No momento estamos ouvindo as gravações e esperamos em breve lançar um novo disco. [Nota: o disco saiu em 2001 com o título de Gafieira Dance Brasil.] Além dos nossos próprios trabalhos, tenho umas músicas e arranjos comigo aqui no Rio e estou pensando em gravar algumas faixas antes de sair daqui. Só em pensar em sair daqui me deixa com saudades…
EL: Bom, isso é que é saudades mesmo. Para nós, seus ouvintes, o lado bom é que teremos mais coisas boas como Mood Ingênuo. Muito obrigado por este papo, Cliff.
O CD
Mood Ingênuo foi gravado no festival de Cantar da Costa na Itália em 1996. Com quase uma hora de música, Paulo Moura e Cliff Korman deixam o ouvinte em estado de surpresa com arranjos e apresentações de composições clássicas como “Ingênuo”, “Satin Doll”, “Carinhoso” e outras obras de Pixinguinha e Duke Ellington. O repertório, entretanto, não fica restrito apenas a estes dois compositores.
A vivacidade e melancolia em “Tico-Tico no Fubá” (de Zequinha de Abreu) abre esta jornada exuberante do repertório de choros famosos. Escrita em 1931, esta música segue o estilo clássico da tradição do choro com três partes. O arranjo criado por Paulo e Cliff deixa espaço para os demais músicos mostrarem suas sutilezas. Os solos de Paulo deixam claro o domínio que ele tem no saxofone. Quando Cliff retoma a melodia num momento de improvisação ímpar, a música ganha novas dimensões. Também deste mesmo período, “Por Que Choras, Saxofone” (de Ratinho) segue o estilo da primeira faixa. É então com “Luíza” (de Tom Jobim) que o clima do CD muda. Suavemente, a introdução que Cliff apresenta traz a melodia com notas macias em perfeito uníssono com a linha sentimental do saxofone de Paulo. Pode esperar o inesperado nesta faixa. A melodia cresce e com ela vem um mundo de emoções evocadas neste arranjo magnífico. É como se fosse o encontro do céu com a terra. “Luíza” é o prelúdio certo para a faixa central de Mood Ingênuo: o potpourri de Pixinguinha e Duke Ellington. Aí você pode ouvir e viver a idéia principal deste álbum. A descrição de Paulo Moura neste sonho-encontro de Pixinguinha e Duke Ellington é um festival de dois mestres. As melodias parecem terem sido escritas juntas e fluem naturalmente uma atrás da outra: “Satin Doll”, “Lamentos”, “Ingênuo”, “In a Mellow Tone”, “Sophisticated Lady”, “Rosa” e encerrando com “Carinhoso”. O ouvinte pode então viver o sonho de Paulo e Cliff.
Estes dois músicos esbanjam com o material que tocam. Eles dão uma apresentação magistral a altura da obra apresentada. Tenho a certeza que para o ouvinte o tempo total do CD parece curto. Como? Uma hora apenas? Só nos resta sonhar que futuros encontros entre Paulo e Cliff ocorram de novo, mais uma vez e com mais frequência.
Para conhecer mais dados e até poder ouvir trechos das faixas deste CD, você pode ir até a página do Cliff Korman ou mesmo a Jazzheads. O CD está disponível em várias lojas na internet e também pode ser comprado diretamente da Jazzheads (o telefone gratuito nos Estados Unidos é 1-800-871-5261).
FICHA TÉCNICA
The Paulo Moura & Cliff Korman Duo
Mood Ingênuo: Pixinguinha Meets Duke Ellington
Jazzheads JH 1137(1999)
Tempo: 59’55”
Faixas:
- Tico Tico no Fubá (Zequinha de Abreu)
- Por Que Choras, Saxofone (Ratinho)
- Luíza (Antônio Carlos Jobim)
- Paulo Speaks
- Elllington-Pixinguinha Medley: Satin Doll (Duke Ellington – Billy Strayhorn); Lamentos (Pixinguinha); Ingênuo (Pixinguinha – Benedito Lacerda); In a Mellow Tone (Duke Ellington); Sophisticated Lady (Duke Ellington); Rosa (Pixinguinha); Carinhoso (Pixinguinha – João de Barro)
- Paulo Speaks
- Saudade do Paulo (Cliff Korman – Oto Coberg)
- Moonglow & Girl Talk (Will Hudson – Heil Hefti)
- Tarde de Chuva (Paulo Moura)
- Cliff Speaks
- Leninha & Espinha de Bacalhau (Codó – Sadembra – Severino Araújo)
- 1 x 0 (Pixinguinha – Benedito Lacerda)
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