Erico Baymma: Uma Entrevista

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Um mergulho no Artesanato Minimalista de Érico Baymma

 

Erico no piano“Não gosto de rótulos, pois faço a música mais sincera que me vem naquele momento da composição.”

 

Nestes últimos três anos, a música brasileira tem sofrido muito com a falta de bons lançamentos no mercado de discos. Duas características muito evidentes que tenho notado são os lançamentos de gravações ao vivo e coletâneas pelas grandes gravadoras. Embora coletâneas sejam bons produtos para apresentar a novos ouvintes o trabalho de um determinado artista ou até mesmo para fazer o resgaste de artistas ou gravações esquecidas, o abuso das gravadoras em reciclar coletâneas chega a se tornar demasiado. Vejam algumas das séries: MPB FM, Super Popular, Geração MPB, Enciclopédia Musical Brasileira, Série Bis, Série Bis Bossa Nova, Série Focus, Série Millennium, Série Sem Limite – já na terceira fase! – Série 100 Anos de Música, E-Collection, etc.

Este fato se agrava levando em conta também que o acervo de obras fora de catálogo não são novamente oferecidos ao público, mesmo havendo um mercado especial para esta área, e os consumidores são restringidos a miscelâneas de sucessos, que são restritas por natureza, enquanto obras de relevada importância ficam à mercê das seleções direcionadas apenas pelo que já foi comercializado no passado. Alia-se a isto a arbitrariedade das gravadoras em reter direitos fonográficos de obras não relançadas, não negociando com os próprios artistas as suas obras.

Este saturamento no mercado me levou a buscar música brasileira através de artistas independentes não ligados às grandes gravadoras. O acervo neste campo é difícil de se achar às vezes, mas os resultados valem a árdua busca. Existe um número imenso de valores artísticos a serem descobertos, e um novo mercado está sendo aberto pelos produtores e artistas independentes. Entre estes, por exemplo, eu apresento Érico Baymma, mineiro de nascimento e radicado em Fortaleza, Ceará.

Érico nasceu em Barbarcena, Minas Gerais, mudando-se para Fortaleza em 1970, atravessando um período de 6 anos em São Paulo. Autodidata no piano, começou a tocar este instrumento aos 6 anos de idade. Mais tarde, aos 22 anos, aprendeu a tocar violão por conta própria. Com estilo intimista, quer seja ao piano ou violão, Érico tem uma sensibilidade precisa na música que cria. No aspecto vocal, a Bossa Nova é claramente o estilo mais marcante na sua obra, o que se enquadra perfeitamente no seu minimalismo musical.

Além de músico, Érico é também produtor e artista gráfico. O vídeo Heartbeat Cam, uma viagem sobre a cidade de Fortaleza, abriu o II Festival de Vídeo de Fortaleza, em 1992. Juntando a paixão pelo vídeo e música, ele foi o vencedor da melhor trilha sonora para vídeo no III Festival de Vídeo de Fortaleza em 1993. Foi ainda premiado com o Destaque do Teatro Cearense em 1996 pela direção musical do espetáculo Eu Chovo, Tu Choves, Eles chovem, do grupo Mirante de Teatro da Unifor, promoção do Grupo Balaio de Teatro. Foi ainda neste ano de 1996 que começou a gravação do disco Artesanato, lançando em 1997. O CD foi indicado ao Prêmio Sharp de Música em 1998 e ao Prêmio Nelsons da Música Cearense em 2001.

Recentemente passei vários dias acompanhando Érico a shows pela cidade de Fortaleza e conversamos muito sobre sua música. De uma disposição jovial e sempre com um sorriso estampado na sua face, Érico se abriu sobre o seu trabalho, suas influências e projetos futuros.

EL – Ao ler o encarte do seu CD Artesanato, um fato que salta aos olhos são os nomes nos agradecimentos. Em particular, há um que se relaciona com o seu nome artístico. Você poderia nos falar sobre isso?

EB – Nascido Érico Baima Rôla, transformado em Érico Baymma, num trocadilho em homenagem à Nana Caymmi, que foi uma incentivadora direta no meu nascimento artístico – assim aproveito para homenagear o clã dos Caymmi, que tanto tenho admiração. A Nana foi responsável direta pela minha auto-descoberta, fazendo-me atentar ao fato de que eu faço música, eu canto – o que foi importantíssimo para mim. Mudou completamente minha vida, que antes era direcionada a atividades bancárias e administrativas. (Sou formado em Administração de Empresas). Homenageio os Caymmi através da Nana, pelo fato e pela musicalidade do clã Caymmi, que tão bem e também representa a música brasileira, da tradicional às influências mais diversas (no jazz, bossa nova e MPB, com Dori, Danilo e Nana; na composição tipicamente brasileira do grande Dorival).

EL – Além dos Caymmis, quais outras influências estão presentes na sua obra?

EB – Minha formação musical na MPB foi direcionada pela presença de Elis Regina, Edu Lobo, Chico Buarque, Paulinho da Viola e Gilberto Gil. Paulinho da Viola é um príncipe, que me influencia “oficialmente” pela leveza e melodiosidade de sua voz. Tom Jobim é também determinante, um compositor popular que respeito demais. Estou com um projeto de show sobre uma parte da obra do Tom, que chamo “Um olhar sur Tom”. Quem sabe não vira disco, se conseguir os direitos, né? [risos] Desde cedo ouvia principalmente Elis, Tom e Chico. Depois veio Caetano Veloso, Nana Caymmi, João Gilberto, Milton Nascimento e o resto da turma toda, principalmente a partir de 1979, quando morava em São Paulo e tive a oportunidade de assistir mais shows, conhecer artistas. Hoje em dia estou mais atento à produção independente ou fora da mídia, que é vasta – assusto-me com a quantidade de ótimos artistas que estão fora do mainstream, a exemplo dos grandiosos Zé Luiz Mazzioti (que sempre me emocionou com sua interpretação de “Bambino (Você não me dá)”, de Ernesto Nazareth e Catulo da Paixão Cearense, e que vim mais recentemente a conhecer boa parte de sua obra) e Mônica Salmaso. São intérpretes de primeira, além de criteriosos na escolha de repertório e arranjos. Mas, claro, existem muitos nomes a se citar, como no jazz norte-americano, com nomes como Billie Holliday, Shirley Horn e, agora, Diana Krall. Adoro o jeito delas cantarem, e como é produzido o som para elas. O piano da Shirley Horn é fantástico, do jeito que eu gosto, de uma sutileza ímpar. E não poderia deixar de citar Chet Baker, que eu já cantava mais ou menos do jeito dele, e me adentrei mais e mais em seu mundo musical depois de tê-lo “conhecido”, há mais ou menos 12 anos. Na música instrumental tenho como ídolos/moldes sonoros Philip Glass, Uakti, Egberto Gismonti, Peter Gabriel, Brian Eno e Jan Garbarek entre outros. Esta presença se reforçou também em 1986, quando fui apresentado à produção da música minimalista e ao jazz contemporâneo. Sou principalmente atento à produção sonora, à forma com que a música “acontece’, o tempero que faz uma idéia virar música, concretamente. Quando me digo influenciado por estes e outros artistas que não foram citados, quero dizer que cada um, com seu estilo pessoal, sua forma de produção e sua emoção, me deu o “meu” recheio, acrescentou-me uma nova forma de pensar. Um disco que acredito que tenha sido definitivo ao meu pensamento musical, para a composição instrumental é o Köln Concert do Keith Jarret, cuja liberdade musical, expressa em sua improvisação e emoção intensas, deu-me dicas de que se pode voar para qualquer lado. Desta forma, também me vejo completamente influenciado por qualquer forma de arte como, por exemplo, literatura, em Clarice Lispector e José Saramago, cujas formas de expressão são libertadoras, desde que reflexivas e amoralistas, um autoquestionamento constante. Acredito que isto induz à liberdade, ou à busca dela, e em mim tem diversos efeitos, principalmente musical. Tenho esta forma de pensar e, por isso, me identifico tanto com estes autores.

EL – É exatamente na música minimalista que você se identifica mais no momento? Como você se auto-define musicalmente?

EB – Eu adoro música, adoro artes em geral. Musicalmente é fácil definir-me no campo do minimalismo, em new age, world music, mas, pra dizer a verdade não gosto de rótulos, pois faço a música mais sincera que me vem naquele momento da composição. Tanto que tenho trabalhos vocais, onde sou incluído no campo da bossa nova, desde que faço uma música intimista, e sou realmente influenciado por esta forma de expressão, também. Mas, em ambos os espaços musicais, instrumental e vocal, busco a ausência de tragédia e o máximo de expressão da emoção – se é que é possível deter a tragédia expressando emoção [risos]. Gosto da música que não faz força pra chamar atenção – que existe, absorve e emociona, somente por acontecer. É este tipo de música que busco.

EL – Como você reconcilia o seu lado artístico vocal e instrumental?

EB – Citei como exemplos de influência determinante, acima, o Köln Concert e Clarice Lispector, entre outros. Tive a oportunidade de entrar em contato com o pensamento de Clarice mais profundamente, recentemente, através de uma entrevista que ela deu para a TV Educativa brasileira, nos anos 70, onde dizia que ela “quer desabrochar”. Acho que o disco do Jarret, paralelamente ao pensar da Clarice, me propõem uma liberdade interior e artística onde há vários caminhos a seguir. Tudo pode ser feito, respeitando-se as limitações estéticas, técnicas e pessoais. E nisto eu me baseio para fazer música vocal e instrumental. Posso fazer de tudo, dentro das minhas concepções, do que percebo do mundo, do que penso que ao mundo pode ser acrescentado. Adoro cantar e fazer música, qualquer tipo, qualquer estilo – dentro dos meus parâmetros. (Pena que ainda seja difícil fazer e gravar a minha música vocal, pelo meu estilo intimista, talvez.)

EL – Antes de abordarmos mais Artesanato, vamos falar da sua música vocal. Ela tem um calor muito especial. Como se deu a aproximação com letristas como Glícia Rodrigues e Felipe Cordeiro, por exemplo?

Eugênio e Aparecida
Eugênio Leandro e Aparecida Silvino

EB – A partir de 1986, conquistada a “revelação” do artista, comecei a compor mais assiduamente, para vocal e instrumental. Já tinha muitas composições anteriormente, mas não dava o valor que merecia… [risos]. Voltando para Fortaleza, em 1989, cheguei mais perto dos artistas locais, com o primeiro grande impacto de ouvir “Consolança” na voz de Aparecida Silvino e violão de Eugênio Leandro. E, disse pra mim que eu pertencia a esta turma, e que valia a pena. Começaram as composições mais frequentemente. Havia, anteriormente, um preconceito em mim, que é a lógica de mercado, consumindo o que é vendido através dele. E assim, como todo um público, assim consumia música. O encontro com Aparecida e Eugênio me fez ver o grande valor e beleza que estão espalhados por todos os lados e que são renegados pelo mercado e pelo público.

Hoje me sinto mais aberto às descobertas e atento à qualidade do fazer musical. Minha primeira parceria foi com Glícia Rodrigues, em 1992, “Beco sem Saída”, sendo gravada no disco de comemoração dos 10 anos do Cais Bar [vide discografia – grande incentivador de grande parte dos artistas que estão por aqui fazendo o novo front da música cearense. Com ela concorri ao Festival Canta Nordeste, em 1994. A composição surgiu ao acaso, quando a Glícia Rodrigues me deu o seu poster poema, que havia acabado de lançar. Estávamos em uma galeria de arte, ela me deu, eu estava com o violão, e em menos de meia hora a música já estava pronta. Ela ficou emocionada, eu fiquei emocionado… Todos. Alguns, mais técnicos, falavam a respeito da harmonia que havia escolhido. E como não sou nada técnico, tudo acontece de acordo com o instinto, só vi a preciosidade da melodia que poderia colocar no lindo poema da minha amiga Glícia. O Felipe Cordeiro já era amigo de muitos anos. Eu não sabia que ele tocava ou compunha. Sabia que ele gostava muito de música e, de repente, tornamo-nos parceiros.

EL – Fascinante! A música floresceu então naturalmente. O mesmo se deu com “Qualquer Dia”?

EB – O “Qualquer Dia”, eu havia feito a melodia, um amigo colocou uma letra que eu não gostei, e gravei a melodia para o Felipe reletrar. E deu certo, embora não fosse o tema que eu tinha proposto. Queria falar sobre amor livre, e ele falou de dor de amor… [risos]. Mas, gosto muito da letra que ele me deu. Talvez ele tenha feito esta opção por conta da melodia, que contém um lamento e da harmonia que tem uma escala descente menor, como base. Além do tal intimismo da minha voz, né?

EL – Aliás, este intimismo é uma característica forte nas suas interpretações. É como se fosse um pedaço do seu ser se esvaziando entre as notas das canções. Estas duas músicas, “Beco sem Saída” (com letra de Glícia Rodrigues) e “Qualquer Dia” (com letra de Felipe Cordeiro), são belíssimas e ao mesmo tempo muito diferentes do que encontramos em Artesanato. É como se Érico Baymma, o cantor, fosse um ser diferente do músico Érico Baymma. Você tem processos de composições bem distintos para música instrumental e vocal?

EB – Em ambas as vertentes de meu trabalho, vocal e instrumental, mesclo conceitos populares, eruditos, urbanos e rurais, sempre visando o meu jeito meio intimista e instintivo de expressão. Vejo também, na composição de canções um certa influência da Maysa, que era profundamente melancólica e “caliente” (o que é um paradoxo), assim como grande parte do jazz – do que eu gosto! [risos] Gravei este ano a música “Sonho Desfeito”, para o projeto de disco do Colégio Santa Cecília, onde vários professores fizeram letras a serem musicadas por compositores conhecidos da cidade. O disco acabou de ser lançado agora, em novembro de 2001. É interessante esta sua observação de que na canção minha voz fosse se esvaziando. Acredito que possa ser assim mesmo. Entre e em cada nota há uma entrega de emoção e, depois, há uma renovação. É o que disse sobre a Maysa, juntando ao Chet Baker. Talvez eu seja uma mistura dos dois? [risos] Na composição instrumental sou intimista também, mas potencialmente mais diverso, aberto. É assim que acontece no Artesanato, em que eu proponho uma viagem musical, que vem do mundo concreto, superficial, ao adentramento, intimismo – mais explícito em “Caça Submarina”, mesmo que nas faixas anteriores já houvesse uma preparação para este caos interior. E depois há o renascimento. Acredito estar sendo coerente na minha forma de produção, sendo que na música vocal, cada canção existe por si própria, e no instrumental há uma conceituação desta viagem ao interior, no trabalho como um todo, o que não impede que as músicas existam isoladamente.

EL – Este trabalho do Colégio Santa Cecília foi muito diferente de Artesanato? Em que sentido?

EB – Este CD foi um desafio para todos. O Colégio, baseado em Santa Cecília, que é padroeira da música (fiquei sabendo agora, no projeto), uniu-se aos produtores do Estúdio Iracema – os mesmos do Cais Bar – com o projeto de fazer com que letras de professores, que provavelmente nunca tinham feito ou mostrado nenhum de seus trabalhos pra ninguém, fossem musicadas e gravadas. O staff do colégio, junto à produção do Estúdio Iracema, fez a seleção das letras, e a produção do estúdio direcionou a quais compositores haveria mais identidade com a proposta de cada poema/letra. O resultado foi fantástico. Pegamos letras de pessoas que não conhecíamos e as tornamos música. O CD ficou eclético, plural, em todos os sentidos. A Valda Maia, letrista de “Sonho Desfeito” – música e interpretações minhas – ficou superfeliz com o resultado, e eu, por conseguinte, também fiquei emocionado com o resultado, da letra tornando-se música, da música sendo arranjada pelo Aroldo Araújo, e da música finalizada. Há verdadeiras pérolas no disco, como a música “A Poesia”, de Tonico Lacerda Cruz e música e interpretação de Isaac Cândido. Tem forró, jazz, choro – tudo! Já o Artesanato foi realmente um trabalho de paciência e muito cuidado. Passei mais de um ano gravando em casa, trabalhando nos sons, masterizando e finalmente editando o disco. Também foi um desafio! Bem maior… [risos]. O disco passou pelo desasfio de ser produzido e depois de ser lançado, que com a grande ajuda de dois amigos especiais, Rita Faço e Alexandre Santos, me ajudaram na produção executiva, senão o disco ainda estaria guardado… [risos]. Tem uma diferença enorme no processo, pois as músicas do Artesanato nasceram de mim, de lugares e tempos diferentes, mas dentro do meu mundo, das minhas idéias, enquanto o “Sonho Desfeito” foi feito “sob encomenda”, em tempo recorde. Em ambas as propostas fiquei muito satisfeito e gosto do desafio, mesmo porque é um desafio ser artista em qualquer parte do mundo, e a gente não escolhe ser. [risos]

EL – Bom, vamos então compartilhar um pouco de Artesanato com os nossos leitores. Como nasceu a idéia deste trabalho? Por sinal, a capa e livreto do CD são realmente muito bem trabalhados.

EB – As músicas começaram a ser compostas no início dos anos 90, logo após minha volta de São Paulo para Fortaleza, algumas antes. Tinha marcada aquela idéia de que haveria de ser “tão-somente” um cantor/compositor de canções, intérprete vocal. Mas, simultaneamente, nasciam composições no piano, que não eram letradas; nem sei se poderiam! Elas ficaram guardadas durante muito tempo, pois queria registrá-las em um piano bom, que não é tradição aqui no Ceará ter acesso a bons pianos. Mas, ainda superava a idéia de ser o “tão-somente” cantor/compositor. E o projeto ia sendo adiado… Alguns opinavam de que se deve ter um só caminho: eu deveria ser intérprete e compositor de canções. Nesta idéia, que era mais ou menos generalizada, não cabiam caminhos alternativos. E eu sempre fui de fazer muitas coisas: escrever, pintar, esculpir, dançar. Não sei ficar quieto! [risos]

Artesanato

Como é que poderia me encaixar na idéia de ser uma coisa só? E com muita paciência – imensa paciência! – fui devagar montando um mini-estúdio e gravando da forma mais artesanal, apesar de contar com tecnologia nova: minidiscs. E através de overdubs, compus o som que está no Artesanato. Claro que gostaria de ter feito um Artesanato mais acústico, com um piano de cauda (de preferência um Steinway que toquei em Franca-SP, que tem uma sonoridade fantástica… cada nota é uma música!), contar com orquestra e outros instrumentos. Mas fazer o Artesanato “sintetizado” foi a maneira que encontrei de realizar o trabalho. E, sem modéstias vãs, gosto muito do resultado do trabalho. Poderia ser melhor, mas sempre poderá ser melhor! Legal você ter gostado da capa e livreto do CD. É mais outra faceta: trabalho também com artes gráficas. É um desafio a aceitação do conceito da arte gráfica do CD, pois há também aquela coisa de que se deve formar a imagem do artista, colocar a cara na capa do CD. Eu já acredito que em tudo há de ter um conceito de uma obra, muito mais que uma imagem de um artista que não siga um conceito que concretize a obra. A capa tem duas traduções: uma, é baseada numa história de que Picasso ficava sentado horas em frente a um muro branco, até descobrir qual a forma que seria dada àquele grande mural, que é mais ou menos como componho… (Pode-se observar que a capa pode assemelhar-se a um muro que é esculpido em camadas, entre elas aparecem diversas caras e ao fundo uma insinuação de um tronco humano, sem cabeça, sem braços e sem pés, em movimento algo sensual, insinuante…); outra, é a sugestão do mar quebrando sobre a areia. Como a areia do Ceará é bem branca e a água é esverdeada. (Daí os temas relacionados com o mar).

EL – Artesanato começa e encerra com o mesmo tema, “Reflexões”. Você liga este tema a Philip Glass, urbanidade e movimento contínuo. Isto também não se relaciona com o mar, outro tema explorado aqui em Artesanato?

EB – “Reflexões”, como explico no encarte do CD, foi um tema proposto para um programa de televisão, que teria como assuntos filosofia, arte, política, pensamento, cotidiano etc. Falei, aqui, de Keith Jarret e outros artistas da música. Falei de Clarice Lispector e Saramago, que são dois “pensantes” compulsivos [risos]. Identifico-me demasiado com esta forma de ser. Não torno nada acadêmico, pelo contrário, fujo do assunto. Mas sou um pensador. E, como pensador, busco a atualização constante do ser e pensar. (Estou agora trabalhando a atualização do agir.) Sou urbano. Poucas oportunidades tive de conviver com o rural, apesar de gostar bastante. Respeito o tempo como norma: cada segundo é diferente do outro, mas isto não me sugere a neurose urbana do movimento frenético, mas uma desacelaração do movimento. Isto eu enxergo em Philip Glass, Uakti, entre outros, e tento me propor a isto, principalmente por enxergar música e arte como o melhor proveito do tempo, a forma mais respeitosa de se viver e conviver no espaço em relação ao tempo. Em meu novo CD (com título de Imagem e Sombra), termino com duas faixas: “Triunfo do Tempo” e “Refletindo e Vivendo”. O mar é o signo do trabalho e confirma esta visão de mundo.

EL – “O Trem do Dia” é uma mistura de universo eletrônico e elementos regionais a que você se refere como “batidas tribais”. Poderia falar mais sobre isto?

EB – Como disse, Artesanato propõe um ritual de introjeção. “O Trem do Dia” ainda está na superfície. É meu lado mineiro, que fala do “trem bão”, e o lado fantástico da cultura brasileira – talvez global -, que é a imagem do trem, como forma de transporte. O trem tem uma conotação meio nostálgica e mágica, né? “O Trem do Dia” tem uma sonoridade bem urbana, universal, assemelhando-se às concepções sonoras de Jean Michel Jarre e Vangelis, e através desta imagem vou trazendo o ouvinte para o intimismo. É largamente utilizada como técnica, em diversos trabalhos de âmbito psicológico, a ativação de movimentos e sentimentos através de ritmos fortes e batidas cadenciadas e repetitivas, lá denominado tribal, que induzem ao transe, e propiciam a introspecção, já que se joga a energia e há uma abertura para um encontro consigo e com o mundo. Esta música e as “batidas tribais”, então, preparam o ouvinte para os momentos posteriores.

EL – Nas próximas duas faixas, “Iracema” e “Litoral” (esta de autoria de Carlinhos Crisóstomo), há uma mudança marcante de estilo – agora mais acústico e clássico. O lirismo das melodias nos leva inevitalmente a Chopin, Debussy. Suas mãos parecem flutuar, quase não tocando o teclados.

EB – Digamos que não seja exatamente um conhecedor de música clássica, a ponto de falar desta ou daquela composição, ou dar pareceres mais técnicos a respeito do assunto. Mas, adoro música erudita, que comecei a ouvir mais depois do surgimento do CD – que proporcionou uma melhor sonoridade, e ausência de ruídos e cliques na música (coisa que detesto! – muitos são defensores do LP, mas não consigo suportar uma música clássica complementada pelos atritos da agulha com o disco e os cliques provenientes do mal trato deste material). Bom, fora este aparte, adoro Chopin, Debussy e Ravel. Tenho ouvido muito, ultimamente, Debussy, que já ouvia muito e tenho buscado mais, assim como Ravel. Mas, quisera eu ter a grandiosidade desses compositores! [risos]

EL – Fale um pouco sobre “A Nave”. Pra mim, esta é a faixa mais Chopiniesque.

EB – Com certeza. Desde que compus e comecei a tocar eventualmente para as pessoas, todos diziam que era Chopin. Eu ria, vaidoso. Não a fiz pensando em copiar Chopin. Compor, pra mim, é uma coisa completamente intuitiva – sou autodidata e não sei ler partituras, portanto… O sentimento da música de Chopin estava ali naquela hora em que comecei a compor. Deve ser isto. É uma música passional. Tem tendências e influências de Chopin, sim, mas nunca teria a grandeza das músicas deste gênio, mesmo que acredite que “A Nave” seja uma das melhores músicas que já compus para piano (seguindo também o caminho de harmonias simples e repetitivas, do minimalismo, embora a melodia seja mais flúida).

EL – O tema de mar, naves e peixes tem um ponto central em Artesanato. Como se enquadra o tema vivaz de “Os Peixes”?

EB – Dentro das idéias do CD, a forma de seguir o conceito de introspecção gradativa foi feita através da imagem dos elementos da cidade de Fortaleza, Terra da Luz e de praias maravilhosas – cidade, pedaço de terra que amo e que escolhi para viver. “Os Peixes”, neste caminho, traz novamente a ludicidade, que dediquei às crianças da minha vida. Tem um quê de música oriental, mas também muito de brincadeira. Já que eu descrevia um caminho, seria essencial falar da forma brincalhona que os peixes têm de existir. Eles se assemelham a brinquedos, em minha visão. E, ainda mais, no “projeto” de caminhar para dentro de si, acredito que há de acontecer uma quebra de tensão, senão as pessoas se afogam! [risos]

EL – Em “O Mar” você se refere às “idéias sonoras” de Jan Garbarek. A melodia cresce numa progressão sonora estonteante.

Encarte

EB – Os artistas que citei como influenciando minha obra não o são somente pela técnica de composição ou de produção sonora, mas também pelo sentimento que transborda e ao qual o meu se identifica. Conheci o Garbarek através do disco It’s ok to Listen to the Gray Voice. (Já o conhecia antes, em participações nos discos do Gismonti, mas foi através deste que o “encontrei”.) Há duas músicas neste disco em especial: “White Noise of Forgetfullness” e “Mission: To Be Where I Am”. O disco é completamente intenso, mas estas duas músicas, em especial, se fundiram ao meu pensamento, tanto pelo título, como pelas composições. “O Mar” mostra a intensidade do oceano, assemelhado ao movimento da vida: mar brando e mar bravio. A identificação com a música do Garbarek está na intensidade também progressiva em que seu sax progride e regride, gerando uma diversidade de sentimentos, completamente inteiros.

EL – “Caça Submarina” é para mim o momento mais visual em Artesanato. Você parece ter captado todo o universo submarino aqui. Júlio Vernes se traduziu em música.

EB – Que legal a sua comparação! Não havia pensado sobre esta possibilidade. “Caça Submarina”, como digo no encarte, nasceu de uma pequena vinheta para uma animação bem antiga, de 1924, do Vikking Eggeling, “Symphonie Diagonale”, que mostra a desconstrução de imagens. Ela durava um pouco mais de um minuto. E a idéia ficou rondando. Tinha mais a ser feito a respeito daquilo. E me entreguei, e mergulhei. Engraçado que quando ainda estava fazendo o master do CD, houve uma oportunidade em que, recebendo uns amigos, a TV estava ligada com o som desligado, e o disco tocando. No momento em que começou “O Mar” até terminar “Caça Submarina”, passava na TV imagens de mar bravio, tempestuoso. E ficamos impressionados em como a música se encaixava com as imagens que víamos! É uma música difícil, eu sei. Mas, acho que é um dos grandes momentos do disco, como todo, e como proposta de “desabrochar”, como disse Clarice Lispector.

EL – Primeiro tivemos “Iracema”, o lado lendário na literatura brasileira. Agora vem a segunda inspiração feminina: “Vênus”. Como foi criada esta melodia?

EB – Engraçado que esta música nasceu em meia hora: composição, arranjos e gravação. Comecei a experimentar sons, e acrescentar… Um momento de tranqüilidade, baseada em jazz moderno, estilo balada. A música tem uma insinuação vibrante e “pesquisadora”, algumas das características de Vênus, o amor “integral”. Embora não credite muito às considerações a respeito de características sexistas, reconheço que dentro do padrão de pensamento as músicas tenham mesmo estas inspirações femininas.

EL – Poderia até se pensar num traçado mitológico na sua música, também. O seu próximo CD instrumental não tem o nome de Imagem e Sombra?

EB – Certamente trabalho com signos e mitos, um pouco instintivo e um pouco racional. A mitologia é a melhor forma da representação da personalidade humana e sua diversidade. Gosto de falar da humanidade, em seus sentimentos, visões ou de sua imagem. Meu próximo trabalho tem este nome, Imagem e Sombra, e também é construído com uma gradação, a partir de um personagem, Andarilho, retirado de um pequeno poema da série “Surrational Images” de Scott Mutter que diz: “I’m a Pilgrim on the edge, on the edge of my perception, We’re always travellers at the edge, on the edge of our perceptions”. Houve um entrave na tradução e compreensão do texto para a proposta de conceituação do trabalho, pois Pilgrim pode ser tanto Andarilho como Peregrino, e como o significado deste segundo carrega uma missão delimitada, optei por Andarilho. E eu queria falar sobre o ser livre, que todos são ao nascer, e seu processo de aprendizado e relacionamento com o mundo. No entanto, o conceito do disco é sobre a história de uma pessoa, das pessoas…

EL – A canção de Eugênio Leandro e Oswaldo Barroso que você escolheu, “Consolança”, se enquadra perfeitamente no espírito deste trabalho. Como as outras peças mais acústicas, “Consolança” é como uma canção de ninar.

EB – Eu acho interessante a visão que se tem das canções mais calmas. Elas são rotuladas de new age ou canções de ninar… [risos]. Gravei esta música por que adoro a melodia do Eugênio Leandro e a letra do Oswaldo Barroso e porque gostei muito do arranjo que fiz para a música. Pretendo gravá-la, com outro arranjo, em meu disco vocal. O arranjo de ‘Consolança” além de se encaixar no perfil do trabalho como música, complementa a idéia do ser que viaja do superficial para um intenso mergulho em si, e renasce através de Vênus. A letra que diz “Se secaro os rio/ ‘inda assim não chore/as águas desse mar/ninguém acaba, não”, mesmo não tendo sido citada no Artesanato, “consola” e ameniza o sentimento deste “viajante”.

EL – Tendo ouvido as suas diversas participações especiais em outros álbuns assim como também ao vivo, é inevitável perguntar se nos seus projetos futuros se inclui um álbum vocal.

EB – Estou com um projeto de disco vocal, há anos, com reinterpretações de clássicos da MPB, da música cearense e composições próprias, ou em parceria com diversos artistas cearenses. Estou também tentando buscar músicas. Estou em um período de muito rigor e quero fazer um álbum completo, que tenha a minha cara. (E quem não quer?) [risos] E este período é de amadurecimento e pesquisa. O rigor e o critério são massacrantes, pois se exige o caminho certo, e estamos todos buscando o caminho certo. Quero letras, quero músicas, quero idéias, muito embora já as tenha concebidas em algum lugar da minha cabeça. [risos] Como já disse, adoro cantar, e quero fazer este e outros discos!

EL – Tive o privilégio de ouvi-lo cantar “Summertime” recentemente. O seu dom de personalizar até clássicos fora do cancioneiro brasileiro é marcante. Você mesmo estará a cargo dos arranjos deste projeto vocal?

Érico Baymma

EB – Esta interpretação de “Summertime” foi gravada para um vídeo, feito por um grupo de professores e produtores de filmes norte-americanos, participantes do projeto Partners of América, que fala sobre o modo de produção no sertão nordestino. A música, cantada por mim, foi gravada e escolhida, como simbologia “modernizada”, do lamento sertanejo mesclado à atuação da cultura estrangeira, através dos investimentos e normas de desenvolvimento e produção americanos. Acredito, verdadeiramente, que há de se personalizar as canções. Tudo tem que ter a cara de quem faz. Por isto, exijo a mim tamanho critério na seleção de músicas a cantar, pois terá que ter o meu jeito, a minha forma de ser e pensar. Já tenho como característica personalizar músicas, não somente do cancioneiro internacional, mas também do brasileiro, a ponto de muitas vezes somente no refrão as pessoas vêm a lembrar que a música que estou cantando já é conhecida anteriormente. Um exemplo disso é uma “tradução” de um forró antigo do Carlos Santos, chamado “Quero Você”, que rearranjei numa bossa muito legal. Nunca acontece das pessoas reconhecerem esse ‘clássico” do forró. [risos] Tenho uma característica muito peculiar: a identidade com a musicalidade da canção, depois é que me atento à letra. Então, ela pode se nacional, americana, européia, o que for, que eu vou tentar colocar no meu jeito e no meu repertório. Por isto, quero e digo para todos os meus amigos artistas de que há que se personalizar, vir à frente, arranjar a partir dos próprios conceitos. Provavelmente, em meu disco vocal, trabalharei em parceria com um arranjador, mas haverá de ter a cara da minha sonoridade.

EL – Érico, obrigado por compartilhar conosco as suas idéias e a sua música.

EB – Eu sou quem agradece pela maravilhosa oportunidade de mostrar um pouco das idéias que rondam meu pensamento e que me motivam a compor, fazer e executar/exercer a música. Ter sido apresentada esta situação é um presente, pois como artista independente e, no caso, também como compositor de música instrumental, são raros os comprometimentos com idéias e o interesse por motivações que rondam uma composição, em um âmbito maior. Este desejo, de saber um pouco mais, sempre está direcionado ao passado – que bem merece ser melhor conhecido! Mas a agilidade de nossos tempos, a quantidade de produtores e produtos artísticos já apresenta material suficiente e consistente para a melhor compreensão do mundo atual e dos elementos presentes e determinantes em diferentes culturas. Foi um prazer ter conversado com você.

 

 

DISCOGRAFIA

 

CDs

  • Érico Baymma: Imagem e Sombra (Independente) 2002.
  • Érico Baymma: Artesanato (Independente, VICD 1487), 1997.

Participações como vocalista:

  • Alano Freitas (Independente, em produção) “Sax Dorido” e “Canção no Jardim”.
  • Faces (Independente, 2001) “Sonho Desfeito”.
  • Felipe Cordeiro: Outra Esquina (Independente, 1999) “Qualquer Dia”.
  • Pessoal do Cais Bar – Novos compositores e Intérpretes do Ceará (Independente, CAIS-95), 1994 “Beco sem Saída”.

 

Trilhas para Vídeos

  • Conto Logo, Quanto Louco (Direção: Lilia Moema): Melhor trilha sonora, Festival de Vídeo de Fortaleza, 1992, e vencendor da melhor trilha sonora no II Festival Nacional de Vitória (ES), 2001.
  • O Alvo (Direção: Lilia Moema): Indicado para melhor trilha sonora no FestRio Ceará, 1994.

 

Esta entrevista também apareceu em inglês na revista Brazzil em março de 2002.